Esta é a última postagem do ano e também a última deste blog. No limiar chega ao fim. Sei que alguns poderão estranhar, lamentar ou considerar a decisão precipitada. Mas adianto que não se trata de um abandono: penso criar em breve um novo blog (ou prosseguir com este, mas noutro formato, ainda não sei) para continuar próximo dos que me acompanham.
O horizonte temático que me propus de início, a fronteira de linguagens, poderia, é verdade, ser explorado indefinidamente. Mas a partir de certo ponto notei que as postagens começavam a formar uma espécie de livro, um livro de horas, com seus capítulos, retornos e marcas de calendário, e que isso exigia uma suspensão, um fim provisório e talvez um pouco arbitrário. Também porque meus recursos não são ilimitados. Para quem sempre escreveu com lentidão, ainda que movido por uma urgência diária, a natureza interativa e a velocidade do blog requerem outro tipo de disposição ou de abordagem. É para me reabastecer e me renovar, portanto, que eu paro aqui.
Neste último dia do ano, quero saudar os amigos e leitores invisíveis que durante dezessete meses me estimularam e fizeram que essa experiência se tornasse tão gratificante para mim quanto pode ter sido para eles. Desejo a todos um feliz ano novo, lembrando o que este fim significa: recomeçar.
O tumulto e o túmulo
discutiam à beira
de um descampado sem fim.
– Eu vou ligeiro.
– Eu vou ao fundo.
– A vida é breve.
– É só vaidade.
– Fogo e mudança.
– Resta o silêncio.
E enquanto argumentavam
não viam que o descampado
se enchia de borboletas azuis.
O músico e a música: a relação não é a mesma que entre o poeta e a poesia. Parece que lá não há distância, o músico está sempre na música. Está ou não está, é tudo ou nada. Há um mergulho no som (com sua exigência de um longo treinamento, de uma longa repetição), enquanto o poeta se mantém na linha d’água, na mediação do sentido. O poeta interpreta, o músico intervém. A poesia é um chamado, a música uma chama.
Um breve prelúdio anuncia uma primeira frase feita de uma nota só doze vezes repetida. Segue-se, num salto, uma segunda frase idêntica à primeira, uma terça acima, e depois outra que eleva ainda mais essa sequência de patamares, mas lançando sua última nota a um ápice melódico quase pungente; para fechar o período, uma quarta frase repete um pouco abaixo, em menor intensidade e já um pouco instável, o desenho da anterior.
O esquema melódico recomeça, abre-se um novo período, mas não exatamente igual: as notas repetidas das frases estão agora meio tom acima; se as passagens são as mesmas, não há mais o clímax vertical no final da terceira frase, e sim uma efusão horizontal na quarta, que se completa e se dissolve numa quinta, ausente no período anterior e gravemente retomada pela tônica, como a assentar a música no seu leito.
Retorna então o prelúdio e tem início um terceiro período semelhante aos outros dois. Mas em vez do empuxo vertical, no primeiro, ou da expansão horizontal, no segundo, ocorre agora uma rápida oscilação das notas a partir da quarta frase, num movimento ascendente, febril, que por fim cessa e mansamente decai. E a música expira com um acorde que se estende numa espécie de exalação, deixando ouvir no final, levemente pontuada, uma última nota só.
Melodia feita de camadas de duração e cujo desenho, sempre acrescido, se repete com variações; melodia intimamente matizada pela harmonia que vai tingindo de cores e de afetos seu lento desenrolar modulado; melodia que combina a percussão insistente do piano e o devaneio langoroso das cordas: Nuvens douradas, de Tom Jobim, é isso e também um encontro entre som e imagem, entre a música e o seu tema – as nuvens, que parecem iguais e estão sempre variando, que são os sonhos da terra, seu hálito, sua face mais abstrata.
rio lago rio companheiro
rio mar aprisionado
rio afora rio adentro
rio da cidade ao lado
rio definido limite
rio aberto ilimitado
rio horizonte poente
rio reflexo dourado
rio enfeixando rios
rio liso rugoso vário
rio e arredores vadios
rio veleiro solitário
rio abandono lento
rio sem dono sem idade
rio miragem pensamento
rio ir porvir saudade
rio guaíba rio biguá
rio de repouso e asa
rio sonoro silencioso
rio palavra seio água
Marcha sem sobressaltos no piso uniforme e sintético da pista de atletismo. Como os ponteiros de um relógio, todos ou quase todos marcham no sentido anti-horário. Desligado da atenção imediata aos próprios passos, o caminhante sintoniza com os que giram ao redor. Uns vão mais depressa, outros mais devagar, uns entram, outros saem; há homens, mulheres, velhos e jovens, todos perfazendo um conjunto que se renova e é sempre o mesmo. Apesar ou talvez por causa do seu aspecto banal, a experiência favorece a compreensão do que há de cósmico e coletivo, cíclico e nivelador na existência. Depois de muitas voltas, começa a escurecer, a visão se desfaz, não há mais noção de lugar. Ao caminhante só restam agora a sensação e o ritmo dos seus passos.
A foto é de 1960. Ainda éramos todos jovens e formávamos um conjunto desigual, nas idades, nas atitudes, na maneira de cada um reagir ao fato de ser fotografado. Ainda não havia a intenção de nos apresentarmos como um grupo, que fotos similares, posteriores, sugerem. Estávamos ali reunidos diante dos nossos pais, provavelmente, sem imaginar que a nossa imagem estava sendo retida para ficar guardada e esquecida por anos a fio, e que um belo dia a descobriríamos com surpresa, os olhos de antes coincidindo por um instante com os de agora. De certo modo, é essa encantadora ilusão que nos une e que faz esse retrato, distante no tempo, se prolongar no tempo – o retrato dos sete irmãos.
A imagem nasce quando uma criança no berço aprende a coordenar os olhos e as mãos e passa a focalizar um objeto, para depois reconhecer quando ele aparece e desaparece, criando assim uma primeira sintaxe com objetos que causam satisfação, medo, ansiedade etc., antes de haver palavras com que designá-los.
Imagens são sedimentos de experiências impregnadas de afetos. É por serem produzidas de corpo inteiro que se diz que uma imagem vale por mil palavras. Mas o essencial da imagem é que ela contém este apelo de toda criatura: Olhe para mim!, que é um chamado a olhar mais fundo, com os olhos da poesia. Porque nas palavras se transfiguram, se condensam mil imagens.
quando eu vi
você parecia vir a ser…
como que tocada assim de leve pluma
revelando-se na bruma da manhã…
contigo eu vou ao léu
a estrada o céu azul
verde a perder de ver…
vejo teu passo na correnteza
deixando um rastro só de beleza…
com cantar fiz do tempo um castelo de amor
pra nós dois, mesmo que meu motivo não soubesses…
luz de poesia
razão do meu erro
meu berro na escuridão…
no eterno movimento da separação e do encontro…
algo em nós já se despedia
mas querendo voltar
junto com o sol
outro dia…
andar onde eu quiser
querendo a tua companhia…
eu jogo ao fogo todo o meu sonhar
e o cego amor entrego ao deus-dará…